Vou aqui penitenciar-me do facto de por vezes ficar a ver o wrestling na SIC Radical, e dou-vos um momento de pausa para se levantarem da cadeira depois de terem caído ao chão com a revelação, porque embora não chegue ao ponto de saber quantos combates o Triple H teve contra o Undertaker, não deixo de achar uma injustiça que o Jeff Hardy nunca tenha ganho o título da WWE. É a sabedoria popular quem o diz, todos temos prazeres culpados, mas a sabedoria popular também choraminga que quem não arrisca não petisca e depois contradiz-se por completo ao barafustar como mais vale um pássaro na mão do que dois a voar, pelo que se calhar a sabedoria popular não é assim uma velhinha sábia e de óptimos conselhos, mas uma daquelas paranóicas que se está sempre a meter onde não é chamada e que diz coisas como "eu nem lhe conto nada!". Isto de reconhecer quando erramos parece-me assim coisa importante, mais que não seja para não voltar a repetir coisas como a dança daquela música do Iran Costa para lá de parva que fez um sucesso ainda mais para lá de parvo há alguns anos atrás, porque aposto que se começar a cantarolar aqui "é o bicho, é o bicho, vou-te devorar", a vossa mente, num daqueles tiques, irá continuar "crocodilo eu sou!". Apenas a admitir isso é que podemos ter esperança em não voltar a cair no buraco, como "A Dança Do Créu".
"A Dança Do Créu" foi-me apresentada numa dolorosa noite como "é pá, esta merda é a pior música de sempre!, é que não dá hipótese!", e durante três segundos duvidei se quem me dizia aquilo não seria um daqueles psicóticos que compram o 24 Horas a achar que é um jornal, porque com o nível de gente como os Meat Loaf garante que o título de pior música de sempre não pode ser passado assim, como se fosse a intimidade de uma das meninas da variante de Cacia em Aveiro. Mas apenas por exactos três segundos, porque bastou o primeiro "Créééééuuuu!" para perceber que estava perante algo que, ao bater no fundo tinha começado a escavar, um profundo estudo rítmico e estrutural que procurou perceber, com genuíno esforço, tudo o que faz uma música má e oferecer ainda pior, voz de cana rachada, refrão brejeiro, coreografia inenarrável, e em especial, a ficar na cabeça. Ó sim, a ficar na cabeça! Não pensem que depois de ouvirem, não vão começar a trautear "prá dançá créu tem qui tê dedjicação! Prá dançá créu tem qui tê habilidadji!", porque vão. Ao outro poeta, enjoavam as tendências politicamente correctas e bradava que o ser humano também é feito do errar, do cair, do falhar, do ser genuinamente mau. Nesse caso, meus senhores, orgulhemo-nos: nunca fomos tão humanos.
Aconteceu recentemente embriagar-me com as estruturas sinfónicas de Stravinski e do seu Жар-птица, a sinfonia do Pássaro de Fogo, enquanto me embrenhava nas complexidades literárias e filosóficas da autobiografia de Zézé Camarinha, quando me surgiu a reflexão da tão profunda necessidade da Humanidade numa arte que reunisse, simultaneamente, as visões e ofertas artísticas de ambos os vultos. A caneta de Camarinha com a virtuosidade de um Mozart. O virilismo do "Joseph of the Moustache", sem dúvida a recordar um outro ícone da pena, do viril e do bigode, Ernest Hemingway, com as texturas orgânicas de Amadeus Wolfgang. As gajas comidas pelo auto-proclamado último macho lusitano com a intensidade e genialidade do eterno rival de Salieri. Mas esse é um nicho que, graças a Gunther, não mais se encontra por explorar!
Mas quem é Günther? As actuais enciclopédias nada revelam, uma posição que, se por um lado pode ser tida como nada menos que ultrajante devido às questões que mais à frente serão apresentadas, por outro pode revelar ainda mais. Será menos um homem e mais um ícone, menos uma amálgama amorfa de carne e desejos e receios e mais um recipiente das maiores e mais nobres aspirações da Humanidade? Aspirações essas, acredita-se, de comer muita gaja. E assim como Buda ou Madonna, também eles imensos ícones, Gunther apresenta-se com um único nome próprio, a reforçar a ideia que é menos uma personalidade individual e mais um receptáculo das aspirações colectivas mundiais, tanto podendo ser o Bodhisattva, quanto o homem do talho. Homem do talho, de quem, aliás, até já foi buscar o ridículo bigodinho e péssimo corte de cabelo.
Günther foi-me apresentado através dessa mostra da versatilidade da Humanidade que é o You Tube, e logo aos primeiros acordes a dúvida me assaltou, poderosa, inquietante, profunda: o que seria esse misterioso "tra la la" que tanto atormentava o artista? Como nas mais geniais criações, nunca nos é revelado, sem dúvida para que cada um possa preencher o vazio com as suas próprias vivências e experiências. com um universo das emoções e inquietações tão mundanas e, todavia, tão humanas.