Segunda-feira, 17 de Agosto de 2009

V

Tabula rasa é uma teoria segundo a qual o ser humano nasce como uma folha em branco, na qual a experiência, a educação, e a sociedade, desenham,  ao longo da Vida, os traços da personalidade. Foi Aristóteles o primeiro a fazer uma referência a esse estado nulo, no seu "De Anima", e o (por ordem alfabética) astrónomo, cientista, filósofo, físico, geologista, islâmico, matemático, paleontólogo, persa, poeta, professor, psicólogo, e químico, Avicena, desenvolvou o conceito, que progrediu até ao século XX a ser rebatido pelo britânico William Golding, em "Lord Of The Flies", no qual crianças isoladas numa ilha paradisíaca têm que digitar um código numérico num computador a cada cento e oito minutos soltam-se das regras estabelecidas pelos adultos e acabam a revelar-se uma cambada de selvagens, incapazes de rumo, coerência ou discernimento - isto porque, para o galardoado autor, o ser humano não nasce num estado nulo, mas com características inerentemente negativas, que acabam a serem esbatidas pela Ordem social.

 

É razoável assumir como um considerável sinal de maturidade a capacidade de filtrar sucessivas experiências de modo a validar as próprias crenças e acções, pelo que nesse sentido ainda me encontro no estágio de criança, prestes a entrar na pré-primária, pois continuo tão influenciável agora como quando era apenas  o bebé mais amoroso do mundo. O meu pai sempre desabafa que apenas procuro a influência dos aspectos mais negativos, em vez de procurar os positivos, e talvez por isso nunca me tenha deixado convencer por quem dizia que eu era tão inteligente. Mesmo em criança me apercebia que determinadas capacidades eram muito mais fundamentais para ser bem sucedido do que conseguir dizer, de memória, o nome dos principais rios, e respectivos afluentes, de Portugal. Capacidades essas como, a) conhecer as próprias emoções e perceber que quando falhamos em admitir os sentimentos ficamos à sua mercê, b) gerir essas mesmas emoções, construíndo ferramentas que permitam afastar estados de ansiedade e irritação, c) motivar-se a si próprio, utilizando as ferramentas anteriormente referidas e estabelecendo um auto-controlo que permita adiar a gratificação e dominar a impulsividade, de modo a dar seguimento a objectivos estabelecidos, d) reconhecer emoções em outrém, o código de empatia que permite perceber os subtis sinais que regem as necessidades e capacidades de familiares, amigos e colegas, e e) construir relações, o desenvolvimento dos pontos anteriores, que baseia todas as relações humanas de amor, amizade e liderança. Eram estas as lições que bem me podiam ter ensinado na escola, não as escusadas referências ao Carlos e a Maria Eduarda serem uns diletantes incestuosos, e que teriam servido um verdadeiro propósito.

 

Esta é a teoria, mas considerar que a Vida pode ser resumida a facilidades faz-me recordar quando andava no Secundário e enganava a minha professora de Português a dizer-lhe que tinha lido "Os Maias" numa única noite por possuir uma inacreditável capacidade de leitura na diagonal, quando o mais que fazia era ler aqueles livrinhos de capa preta e amarela que resumiam a história em três páginas. Como possuía todo um brilhantismo no domínio da escrita, e como também possuía um inacreditavelmente sedutor piscar de olhos, ao qual não hesitava em recorrer sempre que demonstrava como, de facto, o Ega era somente um alter-ego do Eça, a pobre mulher acabava irremediavelmente seduzida e a condecer-me notas que eram garantia de ter alguns colegas mais mesquinhos a permanecerem à saída da escola, com tacos de basebol e quiçá uma naifa, daquelas de borboleta.

 

Mas se considerava que apenas um piscar de olhos, por muito atraente que fosse, seria o suficiente para me conduzir nesses tão pedregulhosos trajectos caminhos da Vida, a realidade demonstrou-me, com a subtileza e suavidade de um comboio desgovernado, a espectacularidade dos meus erros. Aproveito esta referência ao método de locomoção ferroviária para partilhar uma descoberta que desde há muito apoquenta o meu ser, porque é um facto mal reconhecido no nosso país que a distribuição de lugares no comboio rápido Inter-Cidades é, sem sombra de dúvida, a mais inacreditável e espectacular demonstração de lógica matemática, no sentido em que não existe nenhuma. É um desafio constante tentar encontrar o lugar que me está designado, porque se tiver o bilhete com o lugar número cento e doze, este será logo a seguir ao cento e onze mas se tiver o bilhete número cento e dezoito, será logo a seguir ao cento e treze. E se estes exemplos se multiplicam ao longo das carruagens e corredores! Tenho a certeza que Heisenberg formulou o seu Princípio da Incerteza porque andava demasiado nos comboios portugueses. É um diálogo perfeitamente natural, lá o Werner de bilhete na mão à procura do seu lugar e, epá, mas esta distribuição de lugares não tem lógica nenhuma, ando eu aqui com lugar número cinquenta e seis, e passei agora mesmo pelo sessenta e um, e não está aqui nada, é aquilo ali?, não, aquele é o cinquenta e oito, será que isto está separado em pares e ímpares?, não, olha lá que não está, isto destes comboios portugueses!, um gajo anda aqui como uma partícula no meio de ondas, cheio de incertezas, mas que coisa, pá!... Olha que isto, partículas e ondas, partículas e e ondas e incerteza!, isto há aqui qualquer coisa, sim!... É por isso que apoio a cem por cento a construção do T.G.V., se o Heinseberg se saiu com esta só por andar no Inter-Cidades, o que poderá alguém desenvolver no Tren de Gran Vitesse, para aí a cura para a S.I.D.A., ou uma dedução económica que permita suprimir a crise e conceder-me um salário minimamente decente.

 

Se esta distracção em relação aos comboios parece despropositada, a minha antiga chefe sempre me dizia que tenho uma tendência de me distrair por nada como uma reacção à maneira como me limito a ocupar o tempo em vez de viver a vida. Talvez tivesse alguma razão, mas não lhe prestei mais atenção por me ter distraído com uma borboleta que estava a passar, e ainda por cima nem era uma daquelas borboletas espectaculares e cheias de cores como se vê naqueles documentários da Amazónia que às vezes são narrados pelo fulano que apresentava os Jogos Sem Fronteiras, era mesmo uma daquelas borboletas típicas portuguesas, todas brancas e sem graça nenhuma. A maneira como esta minha cabeça tende a divagar pelo Nada terá sido a fundamental razão para me deixar de preocupar com este espaço, porque durante meses a fio dediquei-me a rendilhar fantasias de muito dinheiro e ainda mais sexo que, de alguma maneira, adviriam de ficar sentado a dedilhar o teclado. Antes de continuar, aproveito para referir a abertura de não um, mas de dois parêntesis, que não serão todavia abertos consecutivamente. De facto, um primeiro será aberto para a seu tempo ser encerrado, mormentes o qual será procedida à abertura de um segundo parêntesis, o qual será, também a seu tempo, convenientemente encerrado. E serve o primeiro para se dedicar a refutar quem já está com aquela cara de enfado de, lá está este gajo outra vez com estas histórias de dinheiro e sexo, só sabe falar nisto!, porque subsistência e reprodução são as linhas de código pelas quais a Natureza programa todos os seres vivos, desde aquelas lagartas com muitos pêlos que acabavam sempre nas saladas da cantina da universidade lá de Aveiro, até aos seres humanos, eu incluído. E o segundo parêntesis para admitir como também considerei que por vezes era mesmo muita taradice, pelo que me enganava com explicações do andar a procurar a verdade da Arte e da Vida, como se ter uma alma toda artista me fizesse tão diferente e espectacular em relação a todos os outros. Ou, se quiserem ser ainda mais mariquinhas, como se tivesse alcançado toda a história de Deus me ter encontrado e encaminhado para o meu caminho na vida, como a ovelha que se separa do rebanho e é encontrada pelo bom pastor, tão preocupadinho que está com os seus rebentos.

 

Esta achega também para referir que, tendo passado recentemente por uma das minhas vastas e variadas crises existenciais, dei por mim a consultar alguém que se tem como um especialista nessa matéria tão espessa. Se tinha reflectido que a pessoa em causa seria a mais indicada, i.e., alguém com quem sou obrigado a privar com alguma regularidade, que refere ter vislumbres de vidas passadas, que até recita até passagens da Bíblia, as minhas esperanças esvaziaram-se mais rapidamente que aqueles balões que enchia quando era puto só para os esvaziar com a brincadeira de espalmar a saída de ar para provocar um estridente ruído de "CHREEEEEEEEEEEEEEE!!!!!!!", estridente ruído esse que fazia a minha mãe barafustar, Rui Pedro, pára com isso, parece que é maluquinho da cabeça, o miúdo! 

 

Porque, e juro que o que vou contar é a mais pura das verdades, o pastor começou com um sempre correcto, não devemos ser preconceituosos (tudo bem), não apontemos aos outros pois não apreciamos que nos apontem a nós (é verdade), que existe muito mais no mundo que aquilo que conseguimos ver (OK, justo), pois quando ele teve conhecimento que na terra dele um pai tinha decidido fazer sexo com a própria filha, isso foi algo que não condenou, por não apreciar preconceitos, e desafiou-nos também a nós a não condenar tais actos.

 

Não me recordo da minha reacção, suponho que passou por todo e qualquer sentimento de dignidade, honra e orgulho que pudesse possuir por pertencer à raça humana se escaparem mais depressa que o Papa-Léguas naqueles desenhos animados em que o Coiote acaba sempre a cair de uma montanha depois de ter desafiado todas as leis da física a brincar com os produtos ACME. Suponho que a minha entrega à realidade espiritual ficou por aí, mas talvez reveja os meus conceitos de crise existencial, por serem momentos que envolvem sempre de alguma maneira seios femininos. Como tal, ou é necessária uma revisão de conceitos, ou Deus quer que me torne gay.

 

Este género de coisas comigo terminam sempre de uma maneira espectacular, como da última vez, que dei comigo enfiado na casa de banho da minha empresa a chorar baba e ranho, com o meu chefe a esmurrar a porta e a perguntar se estava tudo bem comigo e a pedir para irmos lá para fora falar, num desenvolvimento tão embaraçoso que nem irei relatar, e que levou as minhas as minhas a apontarem que não era possível eu ter feito uma coisa tão parva, que sou mesmo uma besta, etc., e uma até me apontou que também isso seria uma reacção ao medo que tenho de viver, e que isso é uma coisa muito feia. De certeza que não se estava a referir a mim, porque se alguém vive a Vida sou eu, ainda esta manhã fiquei largos minutos a decidir se ia espalhar a Becel no pão com uma daquelas facas serrilhadas, que cortam muito bem uma fatia de carne, mas muito mal uma peça de fruta, ou uma das facas laminadas que são muito boas para a fruta, mas altamente ineficazes numa fatia de picanha. Se um garfo é sempre um garfo, seja para que opção for, não se percebe a necessidade desta mariquice de diferentes facas para a carne, o peixe, a manteiga, o pão, etc. A faca da SuperUnificação Universal parece-me o mais urgente passo a tomar pela Humanidade, não essa birra de querer conciliar a física newtoniana com a quântica.

 

De qualquer maneira, até me estou a alongar, e acredito que muitos dos meus prezados leitores terão o seu quê de muito melhor para efectuar, pelo que termino a explicar o porquê de me ter dado ao trabalho de esboçar tão incrível peça de prosa, após tantos meses no inactivo. Começou por ter saído apressadamente de casa para apanhar o comboio e, com toda a pressa, ter deixado a minha Playstation Portable em casa, pelo que ao chegar, esbaforido, dei por mim a ver a plataforma da estação ainda vazia. Tinha duas opções, ou ficar a olhar para o ar feito parvinho, ou aproveitar que, assim como assim, já estava de caneta e papel, para escrevinhar. É verdade que a Humanidade ficou inacreditavelmente mais rica e evoluída apenas com este meu texto, mas quem apanhou uma descomunal seca de trinta e quatro minutos à espera do comboio fui eu. É situação que numa oportunidade vindoura terá de ser revista.

publicado por Rui às 22:47
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