Estive a ver o programa da Tyra Banks, uma daqueles grandes programas em que pessoas com problemas entre o ridículo e escabroso, vão desabafar as mágoas, ouvir muitos "e o que sentiu nessa altura?" e "você tem muita coragem!", para então ficar com a certeza de estar a contribuir para "uma grande mudança". Outros exemplos incluem a Oprah Winfrey, o Dr. Phil ou a nossa Cristina Caras-Lindas.
No Tyra em questão, uma advogada, mãe de duas filhas, temente a Deus, explicava a razão do mal-estar no mundo Se isto podia levar a pensar em profundos dilemas espirituais, espessas teorias económicas, complexas tramas psicológicas, nada disso. A culpa de tudo é dos homossexuais. Se está escrito na Bíblia que estar na cama com alguém do mesmo sexo é o maior dos pecados, então Deus está-nos a castigar. O 11 de Setembro? Culpa dos larilas. O tsunami na Ásia? Culpa dos maricôncios. A recessão económica? Culpa dos gaiolas. Este Tyra fez-me reflectir duas questões. A primeira é que a razão de tanto ódio é a felicidade. Eu, se me sinto infeliz, podem ser tantas razões que me sinto esmagado: problemas no trabalho, questões amorosas, complicações familiares, esotéricas, financeiras, sei lá! Para quem odeia, entretanto, a culpa é dos bichas. E pronto. Se isto não é paz de espírito, não sei o que possa ser.
A segunda questão é, obviamente, quão jeitosa consegue esta menina Tyra ser, e deixemo-nos por momentos meditar profundamente...
Apesar disto, achei ainda mais parvo o típico discurso final, com muito "temos de saber superar os problemas", "só superando as adversidades crescemos como seres humanos" e, melhor ainda, "devemos agradecer a quem nos quer mal, pois é graças a eles que nos superamos!". Pensava eu como apenas na televisão seria possível disparar clichés com um tão elevado nível de foleirada, mas o Universo iria provar-me errado. E num rápido fast forward à minha vida...
Conhecem o filme "A Residência Espanhola", em que uma dezena de estudantes de vários países europeus moram numa casa em Barcelona, a discutirem o espaço do frigorífico, a limpeza da banheira ou a recolha do lixo? Bem-vindos à minha vida em Lisboa, onde a morar numa casa com mais doze pessoas já encontrei gente de Portugal, Brasil, Espanha, França, Itália, Inglaterra, Alemanha, Polónia, República Checa, Japão ou Chile. Além de muitas outras histórias, aconteceu há algum tempo alguém roubar doses industriais de comida dos armários alheios, leite, manteiga, café, chocolate em pó, açúcar, cereais, enfim! Claro, quem foi assaltado ficou furioso, e se começaram a saltar ideias para o contra-ataque! As mais óbvias passaram por misturar pimenta com o chocolate ou laxante com o café, mas houve quem pensasse em veneno para ratos no açúcar, masturbação para dentro do pacote do leite ou (e isto é verídico), a ideia de uma estudante de Microbiologia, que teria acesso ao material necessário, vírus da herpes labial nos cereais...
E a senhoria de todos nós, percebeu a fúria instalada? Deu razão à raiva que andava por aqui? Percebeu que sermos fanados de tudo é odiável e insuportável? Qual quê! Disse-nos, e isto também é verídico, "têm de saber superar os problemas", "só superando as adversidades crescemos como seres humanos" ou, melhor ainda, "devemos agradecer a quem nos quer mal, pois graças a eles superamo-nos!".
Não sei se me superei. Mas fiquei com uma grande vontade de lhe torcer o pescoço.