Se soubesse dançar, se soubesse como dar os passos certos, pedia-te para bailares comigo.
Esperei por ti, vieste com forma humana mas só para te suicidares diante de mim. Tanto te criei, adorei, tantos poemas sacrifiquei no teu altar, sem nunca imaginar que fosses ou pudesses ser real. Não importava. As musas não o devem ser. Eras nada mais que uma cenoura pendurada à frente deste asno grisalho. Força motriz, razão para qualquer coisa, desculpa para tudo.
Até que a distância até ti se encurtou. Até que os meus lábios te abraçaram dentro da minha boca, até ao dia em que senti o teu sabor. Surgiste-me nos braços, eras real... Exististe!
Durante semanas fomos protagonistas duma peça de teatro sem cenários, sem público, sem teatro. O mundo inteiro entrou em silêncio invisível, cobriu-se de branco como mobília de uma casa resignada ao abandono. Fomos plenos, a sós.
Mas se te sonhei rosa, à rosa foste fiel e vieste até mim, espinhos e tudo. Poderias me ter traído nesse ponto, não me importaria nem um pouco. Mas traduziste o meu desejo em carne à letra. Forte, determinada, implacável... mesmo comigo.
No teu corpo nem uma gota de carinho. Só e apenas o cocktail cujos ingredientes correspondiam fielmente à receita que idealizado, que me foi servido num copo de arestas afiadas e quebradas, cruelmente frias que nem com o sangue da minha boca rasgada se aqueceram.
O meu corpo, como faria com um transplante, rejeitou o teu amor. Ou aquilo que tu entendias por "amor". Tarde demais me apercebi que dizíamos a palavra em idiomas diferentes.
Ferro de gaiola há tanto tempo desejada quebrado, corri a esconder-me, fugido de ti, pintando um quadro de ilusões traídas pelo caminho. "Cuidado com o que desejas", ouvi-me a mim próprio dizer... "Pode ser que te calhe precisamente aquilo com que sonhaste..."
Sumo amargo bebido como remédio, aprendi a diferença entre "mulher dos meus sonhos" e "mulher da minha vida".
E agora? Sem cenoura o asno dirige-se para onde? Deixará de ser um viajante pelas colinas de si mesmo e passará a ser apenas isso mesmo: um asno?
Não acredito que assim seja. Sentia um orgulho enorme quando acabava um texto, um poema. Era o suficiente para inchar o peito, flutuar. Agora sinto o mesmo quando aquele miúdo pequenito que, em Janeiro não sabia medir, hoje consegue fazer uma esquadria sozinho, sem ajuda. Arrepio-me verdadeiramente.
Transformação e mudança, é ao que se resume a Vida. "Quanto mais se muda, mais tudo fica igual". A intenção é essa. Do pó viemos, ao pó voltamos. O truque é fazer a viagem dum pó ao outro valer a pena.
(...)